JOGAR O JOGO DA VIOLÊNCIA PARA APAZIGUAR A REALIDADE INFANTIL NA ESCOLA
Gisela WAJSKOP
Esta tem sido uma intensa e constante queixa de professores e profissionais da educação infantil, seja nas redes públicas ou privadas : o que fazer com a violência trazida pelas crianças, seja através do linguajar ou dos jogos de lutas, imitação de programas e desenhos televisivos? O que fazer com o conhecimento das crianças, velado e amedrontado, de situações que, ora lhe são familiares pela vivência doméstica, ora lhe são informadas pelos enredos simbólicos televisivos e que são por elas reproduzidas e interpretadas nas brincadeiras e jogos de guerra e lutas?
Quais estratégias pedagógicas podem ser utilizadas pelas docentes de pré-escola e do ensino fundamental que as auxilie a encaminhar uma reflexão sobre as questões da violência, junto a seus alunos, de maneira significativa, consciente e transformadora?
Vários relatos de professoras sobre brincadeiras recolhidos, descritos e analisados na tese de doutorado da autora evidenciam, paradoxalmente, preconceitos, dificuldades e conflitos sociais vividos por elas com seus alunos quando trabalham com o assunto violência.
Este trabalho visa apresentar alguns destes relatos, apontando o caminho da capacitação profissional e da reflexão permanente como a única alternativa de superação desta situação que ameaça e paralisa as docentes.
Em reunião de capacitação ocorrida numa das Regionais do Ensino público paulista, uma das professoras contou-nos que observou as crianças brincando de trabalhar na distribuição de "coisinhas" e "papelotes" pela favela, com uma familiaridade que lhe deu medo. Na seqüência, contou-nos que um de seus alunos é sobrinho de um traficante e que mesmo que ela explicasse ao menino que é "feio" e "maléfico" esse tipo de trabalho, ela sabia que ele continuaria a acompanhar o tio nas tarefas que lhe cabem. Na mesma ocasião, outra professora passou a relatar casos de alunas abordadas sexualmente pelos pais ou por familiares, sendo que estas cenas apareciam, também, em algumas brincadeiras. Esse exemplo e tantos outros relatados sobre brincadeiras de polícia e ladrão, lutas, roubos e cenas de crianças imitando o tráfico e consumo de drogas, assim como questões relativas à sexualidade das crianças são comuns no dia-a-dia pré-escolar. As professoras, porém, analisam e interpretam os enredos das brincadeiras de forma imediatista e literal. Dessa forma, assustam-se com as temáticas explicitadas pelas crianças, tendendo a negá-las e a moralizá-las. Não podem aceitar suas brincadeiras pois sentem-se ameaçadas pelos temas e realidades agressivas nelas reveladas e com as quais não sabem lidar. As posturas das professoras frente às brincadeiras infantis evidenciam uma representação idealizada de criança em oposição à realidade que desconhecem e têm dificuldade em relacionar-se. Por isso desvalorizam o brincar livre, imaginativo em favor de sua utilização como material de apoio e didático. Além disso, as professoras não se identificam com seus alunos, nem do ponto de vista econômico nem cultural. Assim, os vêm com preconceito, como "diabinhos" sem futuro, para os quais os ensinamentos da escola são restritos e pouco eficientes.
Se estas brincadeiras revelam a dura realidade com a qual as crianças convivem quotidianamente, a maioria das professoras proíbem que tais temas e enredos aconteçam em sala. A interação com as crianças é, para a maioria delas, fonte de angústias e de confronto com realidades para as quais olham com preconceito e ignorância: famílias monoparentais, violência domiciliar, mães prostitutas, pobreza, alcoolismo, drogas e sexo. As brincadeiras que trazem estes temas são trabalhadas de maneira não imaginativa e moralizante, fato que contribui para impedir a elaboração dessa dinâmica sociocultural na escola.
Para que pudessem compreender e aceitar esse tipo de brincadeira necessitariam encará-las com uma abordagem socio-cultural, fato que ainda assim seria uma ameaça para a prática profissional que idealizaram para si mesmas.
Brincar com a temática, ao contrário do que as professoras pensam, ajuda as crianças a experimentarem, através de situações imaginárias, os sentimentos de raiva, ódio e angústia advindos de cenas violentas conhecidas. Esses sentimentos se transformam em elaborações simbólicas internalizadas e que passam a ser expressados e conscientizados através da linguagem. De outra parte, a brincadeira e jogos de guerra, quando permitidos, propiciam também às crianças a vivenciarem sentimentos de punição e justiça quanto aos atos violentos, quando podem experimentar, simultaneamente, papéis relativos ao bem e ao mal, ao bandido e ao mocinho, à polícia e ao ladrão. Expiando a agressividade na brincadeira as crianças poderão entendê-la e transformá-la em linguagem simbólica. Seus sentimentos poderão ser expressos, gradativamente, através da linguagem e os atos agressivos tornar-se-ão assunto de "bebês" ou de "selvagens" a serem julgados e punidos.
A consciência das dificuldades, restrições institucionais, sociais e pessoais das professoras revelou, em nosso trabalho, uma demanda por processos longos de expressão, reflexão e reorganização dos discursos e dos pensamentos sobre as crianças e suas brincadeiras. Não há dúvidas que a formação profissional contínua é, no caso da educação infantil, uma prioridade emergencial!
Nossa pesquisa concluiu que é preciso que as professoras possam passar por processos contínuos de formação de maneira a identificar e analisar seus estilos de interação com as brincadeiras das crianças assim como possam compreender as representações que lhe dão suporte em nível de discurso.
A partir de nossa experiência, consideramos que estes processos devem priorizar atividades que propiciem a vivência simbólica das profissionais em oficinas baseadas na dramatização de temas assim como a reflexão de suas ações com base na observação das brincadeiras das crianças. Começar por tentar diferenciar a brincadeira das outras atividades humanas auxilia a buscar uma significação e uma definição comum do que seja brincar, facilitando a comunicação e a construção de um projeto educativo coletivo e intencional. Para que esses processos tenham eficácia, porém, é preciso que sejam freqüentes e contínuos e estejam baseados em pequenos grupos que compartilhem de um mesmo espaço profissional.
Nesse processo, talvez, as professoras aprenderão com as crianças que é tudo brincadeira... e que esta é bem mais pacifista do que parece!

Gisela Wajskop é Doutora em Educação/Consultora em Educação Infantil, S.P.

04/05/2007

 

 

 
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