A REINVENÇÃO DA INFÂNCIA
Tânia Fortuna
Em busca da compreensão da infância
Como são as crianças de hoje em dia? Por que as crianças parecem ser tão diferentes das crianças de antigamente? Para onde vai a infância? Perguntas como estas afligem muitos adultos que se vêem às voltas com as tarefas de criar, cuidar e educar crianças.
Não é nada fácil responder a estas perguntas, especialmente nos tempos atuais, em que vivemos sob a égide da dúvida e da incerteza. O mundo está em disparada, como diz Giddens(2002). Assim, corre-se um grande risco ao tentar definir o que é uma criança de forma conclusiva, pois enquanto o fazemos, a infância já mudou!
Creio que é preciso correr este risco, pois, afinal, deve haver algo que subsista a tantas e tão rápidas transformações que permita refletir sobre as questões acima, sem deixar de admitir a provisoriedade do conhecimento.
O que quer uma criança?
Tal como Freud perguntava "o que quer a mulher?", cabe indagar: o que quer uma criança?
Esta pergunta supõe que a criança tem um querer, isto é, tem desejos. Admitir um querer específico das crianças é revolucionário, haja vista o longo tempo durante o qual acreditou-se que as crianças eram reflexo dos adultos, em versão miniatura, mal dissociadas deles. Percebidas, na melhor das hipóteses, como seres incompletos, imperfeitos, seu valor não se definia pelo eram no presente, mas pelo que viriam a ser.
A criança como categoria social tem um surgimento recente, situado entre os séculos XIII e XVII. A infância é, pois, uma criação da sociedade sujeita a mudar sempre que surgem transformações sociais mais amplas.
Se admitir um querer específico das crianças é revolucionário, também o é ouvi-las, como crê Dolto (1999). Como ouvir o que a criança diz? Freud declarou: para ser educador é preciso
penetrar a alma infantil e para isso é preciso reconciliar-se com a infância dentro de si, para o que a familiaridade com a Psicanálise tem especial contribuição (ed. orig. 1913). Eis, aqui, um
paradoxo: é preciso aproximar-se da criança que fomos e distanciarmo-nos da criança que fomos, prestando atenção à criança que está diante de nós. Isto é, para compreender a criança é preciso
aproximar-se da criança real, examinar suas condições objetivas de vida, conhecer suas hipóteses, seus desejos, etc., mas só "enxergarmos" esta criança segundo a lente da nossa
própria infância - que nos assombra. A infância, escreve Heywood (2004) é, em grande medida, resultado das expectativas dos adultos.
Cabe perguntar, então: e nós, adultos, o que queremos de uma criança? A infância é a esperança do adulto, pois ele tem, através dela, uma promessa de imortalidade que se baseia na expectativa de que seus valores tenham continuidade. Talvez esta seja uma pista para compreender a perplexidade e até mesmo o mal-estar adulto desencadeado pela percepção de que as crianças estão diferentes: sem reconhecermos nossa própria infância - na verdade, a imagem guardada dela - na infância atual, sentimo-nos ameaçados em nosso desejo de perpetuidade, privados de futuro.
É, por certo, curioso que, a despeito de vivermos numa época em que ser jovem seja algo tão valorizado a ponto de que os próprios adultos queiram ser sempre jovens, fiquemos atônitos
ante o desejo infantil de ser jovem também. Não que o desejo de crescer, de ser grande como o adulto, identificado por Freud na brincadeira infantil (ed. orig. 1907), não valha mais: o problema é
que sendo o desejo do adulto ser jovem, e querendo a criança o que o adulto quer, ambos querem o mesmo, sem que um possa se inspirar no outro e ver nele o seu próprio futuro.
De outra parte, a infância parece nunca ter sido tratada de forma tão paradoxal como atualmente: promovemos um verdadeiro infanticídio, enquanto somos largamente 'infantocêntricos'. A destruição de vidas em um grande segmento da população infantil ocorre, segundo Castells (2002), porque as instituições de controle social são sobrepujadas pelas redes globais de informação e do capital, favorecendo a exploração infantil. Observamos, no entanto,
concomitantemente, uma centração na infância visível nas rotinas familiares das classes médias e ricas, organizadas em torno de necessidades infantis identificadas, geradas e proclamadas pelo
mercado de consumo.
Eis um solo fértil para que teses catastróficas sobre o fim da infância e a morte da criança proliferem, mas basta um rápido olhar sobre a história do Homem, para constatar que os modos de vida estão, desde sempre, modificando-se.
O que querem, então, as crianças de hoje? Winnicott (1993) já dizia: ter pai e mãe vivos, juntos e que sejam fortes, dentro de si. Será que isto perdura nos dias de hoje, em que vivemos
uma nova ordem familiar? A novidade da família contemporânea, a partir da década de 60, é o novo conceito de casamento, definido como uma união de dois indivíduos em busca de relações íntimas ou realização sexual, cuja duração é relativa. Roudinesco (2003) acredita que neste contexto a transmissão da autoridade é mais problemática à medida que as recomposições conjugais aumentam, o que ajuda a explicar os problemas atuais com autoridade e limites.
No entanto, a despeito das transformações da família, Alsop e McCaffrey (1999), citando uma pesquisa feita na Inglaterra com a intenção de estabelecer um ranking de eventos traumáticos segundo as crianças, mostram que figura em primeiro lugar como temor infantil a perda de um dos pais, tanto faz se por morte ou divórcio. Uma pesquisa feita pela Cartoon Network (Veiga, 2001) ressalta que a família continua ocupando o centro do universo infantil. Das mil crianças investigadas, entre seis e onze nos de idade, de quatro capitais brasileiras, 91% considera que se relaciona bem com pai e mãe, 98% acreditam acatar seus conselhos e 89% acham importante a opinião dos avós.
Percebe-se, portanto, que continua sendo importante para as crianças a presença de adultos capazes de exercer funções parentais por meio das quais sua inserção cultural e uma herança moral seja garantida. São vínculos familiares tecidos de modo a desenvolver a
capacidade de estabelecer vínculos coletivos mais amplos, em que possam se sentir, a um só tempo, amadas, contidas e estimuladas a crescer, separar-se e ser diferente. O que estas crianças parecem lembrar, com os seus quereres, é que nossa humanidade depende dos outros.
Não devemos esquecer disto, mesmo quando deparamos com os resultados da mesma pesquisa da Cartoon Network, em que as crianças revelaram estar mais interessadas em roupas do que em brinquedos e muito preocupadas com sua aparência e popularidade. No que diz
respeito à constituição da subjetividade infantil, os brinquedos são parte importante deste processo, e tão afetados pelas mudanças contemporâneas como o são os adultos e as crianças. A ambigüidade de uma cultura que atribui, o tempo todo, um baixo status social ao brincar, associando-o à perda de tempo, 'coisa de criança', não-seriedade, enquanto valoriza a juventude, o gozo imediato e sem limites e a alta-produtividade, tem implicações sobre a constituição da infância.
Mas na confusão de valores criada, há geração de espaço para a reinvenção da infância, com pistas para a compreensão da relação entre o mundo adulto e o mundo infantil.
Tomemos o caso das crianças em situação de rua. Apesar de passarem grande parte do tempo longe dos adultos/cuidadores e expostas às mais diversas situações de risco, tais como violência física e emocional, como demonstra Cerqueira (2004) em uma pesquisa envolvendo 72 meninos que vivem ou trabalham pelas ruas de Porto Alegre, as crianças criam mecanismos próprios de proteção e continuam brincando. É bem verdade que na rua estão expostas a toda
sorte de riscos e à violência, assim como denunciam, com esta condição, o abandono do papel de cuidador por parte dos adultos, mas reinventam o ser criança reiterando as necessidades que têm

23/03/2006

 

 

 
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